quinta-feira, 2 de abril de 2015

Quem ganha o edital do VAI se distancia da Cultura Periférica?

Essa foi a pergunta feita para mim pelos realizadores do podcast Frequência da mata, que mensalmente produz programas para a internet juntando música independente com assuntos de relevância social. Neste caso estava eu como entrevistado respondendo a questões sobre o Programa VAI, do qual coordeno nos últimos 3 anos mas já trabalho a quase 7 anos. O VAI - Valorização de Iniciativas Culturais é daSecretaria Municipal de Cultura de São Paulo e financia pequenos projetos culturais, principalmente de grupos e coletivos de jovens que produzem ações culturais na periferia da cidade de São Paulo. 

Sem aprofundar é preciso explicar que o termo Cultura Periférica ganhou força nos últimos anos, tendo como seu abre alas a literatura produzida escritores e poetas que principalmente a partir dos anos 90 começaram a experimentar a potencializar suas ações de forma semelhante ao movimento de literatura marginal, divergente ou ainda maldita que entre os anos 70 e 80 levantaram a bandeira do artista independente e as relações ou não com o mercado editorial, a mídia e a sociedade em geral, tendo como eixo principal as formas de reflexão do artista sobre a sociedade, produção e difusão de sua obra, seja ela ofertada gratuitamente ou ainda cobrada, mas desde que apresentada a população com preços justos e acessíveis aos populares. 

Tanto nesta época quanto desde que a atividade artística passou a ser considerada um bem imaterial passível de peso e medida da esfera econômica, esta reflexão acompanha e inquieta seus realizadores. Para tanto então é preciso afirmar que existe atividade artística que principalmente é pautada pelo  mercado, por interesses de empresas em prol de produtos,  como também instituições religiosas ou ideológicas ou ainda simplesmente pela consolidação do mercado e da industria específica da cultura. Justamente os primeiros registros que temos da existência da sociedade são resultados do processo de "aculturação" do homem em sua necessidade de expressão e manutenção das emoções dessa memória vivenciada. Desde que conhecemos o homem ele desenha na parede e da as mãos em roda para cantar, contar histórias ou antes disso para sua proteção individual por meio do bando e a produção artística consolida a existência dessa cultura

Os grandes dilemas da sociedade contemporânea, antes de Marx e depois de Lula, continuam sendo a sobreposição de direitos com o mercado. É direito ter um propriedade assegurado pela constituição, desde que seja paga. É direito ter uma boa instituição de educação, desde que seja para poucos ou cara. É direito ter cuidados com a saúde, mas precisa ser (AMIL) particular por que a oferecida pelo setor público (SUS) é muito ruim. Mas mesmo entre os direitos a que separar em duas categorias: a material e a imaterial. 

Na categoria material podemos citar as propriedade como casas, carros, outros bens ou mesmo os serviços que tem características de divisão ou exclusividade e no imaterial podemos nos referir a educação, cultura, conhecimentos de interesse social que tem características de multiplicação. Justamente quando os bens imateriais são incluídos dentro da esfera dos serviços que a atividade cultural ou de conhecimento passa a ter peso e medida, agregado ao reconhecimento público da obra ou dos serviço. Aqui temos a enorme distância entre os serviços utilizados pela classe média ou alta na área da educação, saúde, cultura e outros em contraposição com esses mesmos serviços oferecidos pelo governo orientado pela sociedade de direitos.  

Separemos então as atividades de produção que tem potencial de sustentabilidade econômica e as que não tem e ambas são comercializadas. O governo é colocado como ponto mediador entre os interesses da economia e da população, este se coloca no papel de corrigir e suprir os direitos não acessíveis a todos, por meio da falta de poder econômico, gerado pela mecânica do capitalismo que institui o lucro e a mais valia, o empregado e o patrão, o explorado e o explorador, sendo toda essa engrenagem sustentada por conceitos morais que estruturam essa sociedade, ou seja, por meio de um pensamento dominante. O empregado só é empregado por que aceita e assume essa postura, introjetada desde seu nascimento e promovida a séculos.   

Logo, aprendemos na universidade ou atualmente em alguns botecos da periferia nos saraus, como antes também foi possível aprender isso nos bancos da igreja católica, por meio da teologia da libertação, que a sociedade é regida por uma pequena quantidade de pessoas, as que detém poder financeiros ou institucionais, que pautam as leis que legitimam sua ação como a mercantilização dos direitos em si para garantir sua soberania diante do resto da população, a maioria. Todos tem direito, mas alguns tem mais direitos que outros. 

Além de deterem os meios de produção, a grana para fazer a casa noturna, a cara do artista na Globo para estampar nos cartazes de divulgação, os grandes musicais da broadwey, horas de rádio comprada com a mesma música martelando na cachola dos populares (nós), ainda acessam recursos do governo para aumentar o seu lucro. Exemplo claro é a Lei Rouanet, incentivo fiscal para empresas abaterem do pagamento do imposto de renda o que patrocinou para a cultura, que é possível lembrar de algumas polêmicas como o blog de poesias de Maria Bethania, a qual adoro por sinal, que previa a captação de R$ 1,3 milhão porém a cantora desistiu após grande crítica de artistas independentes. Outro caso foi em 2006 quando o Cirque du Soleil captou R$ 9,4 milhões e que na época cobrava entre R$ 50 (meia entrada) e 370 reais (VIP). É frequente a crítica da "seleção" dos projetos de cultura que terão recursos do estado, por meio dos impostos, serem pautados por marqueteiros de grandes empresas e bancos. Ao final os bancos criam seus próprios Centros Culturais e divulgam seus nomes como apoiadores e realizadores da cultura. Opa, não seriam justamente os bancos que alcançam lucros exorbitantes? Em 2011 o Itaú lucrou R$ 14,62 bilhões, 

Certo dia ouvi da boca de um aristocrata, que ao ouvir realizadores da "cultura periférica", disse que o discurso era sempre o mesmo, dinheiro para suas produções, que todos queriam dinheiro, inclusive ele, aristocrata da classe média alta, e novidade mesmo ninguém apresentava. De fato, os artistas da periferia produzem seus cenários com material reciclado, transformam bares em centro culturais, distribuem livros e poemas em terminais de ônibus, batem os tambores da cultura popular, entre outros, sem nenhum tipo de apoio financeiro, realmente não é novidade para ninguém. 

Para essa pequena elite branca (dona de grandes empresas e bancos) é extremamente interessante que os artistas da periferia ou independentes, tenham receito de buscar dinheiro público para suas produções. Interessa a essa elite essa imagem vendida de que o cara, do lado de cá da ponte, que aceita o dinheiro público seja taxado de mercenário ou vendido, não é bom tocar neste dinheiro maldito, é melhor que essa pequena elite, que já está suja, faça isso por você.

Em meio às últimas grandes crises mundiais era comum ouvir no noticiário o incentivo, dinheiro, dado pelo governo para que bancos particulares não quebrassem, ou seja, o governo dando dinheiro para bancos, claro que também pensando nos clientes, para que eles conseguissem se manter ativos, mas que ao final tem como objetivo último o lucro pelo serviço prestado. Não tenho capacidade de discutir mais sobre isso. 

Voltando ao que interessa, se um dos papeis mais importantes do estado é proporcionar a população seus direitos mais essenciais, o que fazemos diante deste cenário onde o governo do estado reservou para a sua lei de incentivo, os projetos que as empresas escolhem patrocinar, R$ 118 milhões em 2011 e para este mesmo ano os projetos com financiamento direto, sem a empresa, recebeu R$ 25 milhões? Artista de periferia ou independente conhece o marqueteiro da grande empresa? Conhece o dono do banco? Pega dinheiro público e vendo ingressos populares por R$ 200 reais?

Se o dinheiro é público ele deveria servir aos que menos tem dinheiro e não aos que mais tem e romper este medo do acesso ao recurso é mais que necessário, é justiça. Já fui chamado de social democrata, não sei na verdade o que eu sou, mas de uma coisa eu tenho certeza, é digno que os artistas independentes tenham prioridade, se não exclusividade, ao apoio de suas obras e ações culturais. Gostaria de vivem em mundo de esquerda, de distribuição de renda, de real igualdade de direitos, mas vivo no Brasil em 2012.

Sobre especificamente estes artistas que são da periferia e gastam suas horas livres, criatividade, força de vontade, seus salários para compartilharem seus fazeres artísticos com a Dona Maria, sua vizinha, com o Zé da pastelaria ou com o João que tem 7 anos, digo que eles tem mesmo que acessar o dinheiro público para suas produções. O VAI financiou 176 projetos em 2012 com o valor máximo de R$ 23 mil e com um orçamento total de R$ 4 milhões. É um programa de baixo orçamento nas duas mãos, tanto do investimento do governo quanto do recebimento para os realizadores, mas não é pautado pela lógica do mercado. Existe ainda, como já dito anteriormente o Proac Editais que investiu R$ 25 milhões em 2011 para projetos entre R$ 20 e 150 mil,  o Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo que aportou R$ 12 milhões para 45 grupos com valor máximo de R$ 700 mil para cada. O Programa Cultura Viva, com destaque aos Pontos de Cultura que dinamizaram a atividade cultural no país. Na verdade entendo que os tempos foram de avanços, mas ainda falta muito.  

Ser um realizador da Cultura da Periferia antes de tudo está conectado com o reconhecimento da ideia periferia, o compromisso em falar para mas também ouvir a Dona Maria, de compartilhar saberes, apresentar ideias, explodir vontades.e não sossegar enquanto houver algum tipo de injustiça. Sua pauta, motivação e vida é essa pela própria natureza e não para pagar de gatinho. Há os que se afastam disso, mas automaticamente quando perdem esse vinculo também perdem sua matéria de inspiração mais divina, a alma do seu povo. E então suas composições ou criações podem até agradar há alguns, podem até virar cultura de massa, mas sem esse vinculo fica superficial. O problema não é pegar o dinheiro, é perder o essencial, o compromisso.

Concluindo, entendo que os que conseguiram ter acesso há algum recurso público, seja VAI, Fomento, Proac ou Cultura Viva e perderam seu compromisso com esse povo é que se afastaram da Cultura Periférica. Também há muitos que nunca tiveram este compromisso mas que se travestiram ou utilizaram o discurso para pegar verbas, mas que ao final o tempo resolve, murcham por si, serão eternos parasitas e é preciso ficar atento para não contribuir com estes também, "eu odeio explicar gíria". A Cultura Periférica nada mais é do que uma ideia, uma intenção, um sentido para tudo isso que fazemos, nada mais. 

Mas de acordo com meu olhar, até privilegiado, a galera que faz a diferença na quebrada, faz com ou sem dinheiro, mas quando tem dinheiro o acabamento da obra ou da ação é melhor e esse povo precisa do melhor.

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